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20 DE NOVEMBRO

EDUCAÇÃO & LITERATURA

JOSUÉ GERALDO BOTURA DO CARMO

 

 

(Roteiro)

Ademar Lino

Claudinei Pereira

Josué Geraldo Botura do Carmo

Oscar Ribeiro dos Santos

Sueli de Fátima Zerneri

Espírito Santo do Pinhal, 23 de junho de 1988

Grupo Ianomani de Cultura e Arte

Cena I

A viagem 

Homens...

                        Mulheres...

                                               Crianças...

 

Espremidos uns contra os outros

Vomitando...

Defecando...

Horripilante atmosfera

Extremada pelo calor.

 

Cena II

O Navio Negreiro

Treze de Maio!

Mito histórico

Escravidão no Brasil

Libertação dos escravos...

Mas qual escravidão?

Mas qual liberdade?

Desde quando somos livres?

Até quando seremos escravos?

Levam-nos a pensar

Na escravidão do passado

Para que não percebamos

A nossa escravidão presente.

(Pobre daquele

que precisa pedir permissão

para fazer algo).

Queremos a liberdade

De poder escolher

A quem servir.

Queremos a liberdade

Até mesmo

De podermos escolher

Não servir a ninguém.

Ser livre é não ter

Que servir a ninguém!

 

Cena III

O batismo

Precisamos salvar a alma dos negros

Os males físicos

E a perda da liberdade

São amplamente compensados

Pelo “caminho da salvação espiritual”

Através da conversão ao cristianismo.

Tudo para o seu bem

Para a salvação de sua alma.

A virtude do homem

Está em trabalhar duro

Para o seu sustento

Em conformar-se

E manter-se manso

Como Cristo o foi.

Submeter-se à ordem vigente!

Respeitar o seu Senhor!

Arrepender-se de suas faltas!

Para alcançar o Paraíso Celeste!

 

Cena IV

O mercado

Vende-se por cômodo preço

Um escravo preto

De 45 anos pouco mais ou menos

Excelente oficial de pedreiro.

 

Aluga-se uma escrava

Para todo serviço doméstico

Na rua do Bom Jesus

Número 27.

 

No dia 15

Fugiu o escravo Dionísio

De 45 anos

Crioulo

Fala mansa e pausada

Modos que demonstram

Humildade

Mas também tem

Mais de 30 fugidas.

 

Vende-se uma escrava

No pátio de São Bento

Quarta cada do canto

Da rua Boa Vista.

 

Negrinha:

Existe uma

Para alugar

Na rua Góes

Número 1.

 

Fugiu em dias de março

O escravo Pantaleão

Baiano

30 anos

alto

fulo

nariz afilado

boa dentadura

Oferece-se boa gratificação

E protesta-se

Com todo rigor da lei

Contra quem lhe der couto.

 

Vende-se

Uma elegante e bonita mucama

Recolhida de casa particular

Com 18 anos mais ou menos.

Sabe engomar

Roupa de homem e senhora,

Costurar e cortar figurinos,

Tudo com perfeição.

O motivo da venda

Não desagradará o comprador.

 

Na travessa do Paissandu nº 3

Necessita-se de uma alugada

De 10 a 12 anos

Para lidar com crianças.

Prefere-se escrava.

 

Vende-se

3 excelentes escravos

sendo, um moleque

de 16 para 17 anos

Bonita figura;

outro de 35 anos,

habilíssimo em serviços de lavoura;

e uma crioula de 14 para 15 anos

Bonita estampa.

 

Vejam este negro:

Forte

De corpo bem feito

Bonito de cara

Canela fina

Boa dentadura

Pouca barba

Fala bem.

 

PRECISO DE UM ESCRAVO SADIO E FIEL.

 

Cena V

Zumbi

Em nome de um Deus

Supostamente branco

E

Colonizador

Que nações cristãs

Têm adorado

Como se fosse

O Deus Pai

De

Nosso Senhor Jesus Cristo,

Milhões de negros

Vêm sendo submetidos

Durante séculos

À escravidão

Ao desespero

E à morte.

 

Deportados como

“peças” do Ancestral Aruanda,

encheram de mão-de-obra barata

os canaviais...

as minas...

Servindo

Os brancos senhores

As brancas madames

 

Indivíduos desaculturados

Clandestinos

Inviáveis

Encheram as senzalas

E enchem ainda de subgente:

Cozinhas

Cais

Bordéis

Favelas

Baixadas

Xadrezes

 

É a lei dos brancos...

 

SURGE ZUMBI!

SURGE QUILOMBOS!

 

Floresceu a liberdade impossível

E a identidade proibida

Em nome de um Deus único

Que fez toda a carne

A preta e a branca

Vermelhas no sangue.

 

Vamos reconquistar Palmares

Vamos voltar à Aruanda!

Vamos garantir a paz e a liberdade

Ao povo negro

Sacrificado

Pelos poderes do império

E pelos poderes do templo.

 

Estamos aí!

De pé!

Quebrando muitos grilhões

Em casa

Na rua

No trabalho

Na igreja.

 

Fulgurantemente negros

Ao sol da luta

E da esperança;

 

VINTE DE NOVEMBRO

MORRE ZUMBI.

 

Cena VI

A festa

No último dia 10 do mês

O nosso amigo Comendador

Joaquim Batista do Amaral

Findo o toque do sino

Faz saber a toda aquela

Porção de homens

Que findava o estigma do cativeiro...

 

O honrado lavrador

Veio a perder alguns contos de réis,

Mas ficou amplamente compensado

No gozo da consciência...

 

Ele ainda fez mais:

Brindou os libertos

Com grande e lauto jantar

Em que se deram

Animadíssimas cenas de gratidão

Por parte daqueles rudes corações...

 

Um dos pretos levantou-se

Com esse brinde:

-         À liberdade!

Sendo seguido pelos outros:

-         Ao nosso senhor de ontem!

-         Ao nosso patrão de hoje!

 

 

Cena VII

A Lei Áurea

 

-         A escravidão é um atentado à dignidade humana!

-         Não vou dar a liberdade!

-         Devemos minorar as angústias dos escravos!

-         O escravo é meu!

-         Temos que lhes suavizar as condições de existência!

-         Alforria jamais!

-         A lei terá que por fim a tamanhas atrocidades!

-         Paguei caro pelo meu escravo!

-         É infame, é degradante a escravidão!

-         Quem pagará pelos meus prejuízos?

-         Precisamos tirar os escravos das fazendas!

-         Quem trabalhará nos canaviais?

 

-         Meu Deus! Não há mais escravos em minhas terras!

 

Houve grande agitação para que a Lei Áurea fosse promulgada.

A PRINCESA IMPERIAL REGENTE EM NOME DE SUA MAJESTADE O IMPERADOR

D. PEDRO II, FAZ SABER A TODOS OS SÚDITOS DO IMPÉRIO QUE A ASSEMBLÉIA

GERAL DECIDIU E ELA SANCIONOU A SEGUINTE LEI:

Art. 1º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.

 

A partir deste instante

A liberdade será algo vivo e transparente

Como o fogo ou um rio,

Ou como a semente de trigo,

E sua morada será sempre

O coração do homem.

 

Está terminada a grande campanha!

O contentamento toca a mais íntima fibra

Do coração da pátria,

E no entanto,

É preciso dize-lo nesta hora

De suprema alegria:

Não é chegada ainda

O momento de repouso

Para os operários da liberdade.

 

Foi enorme a vitória.

De um golpe destruiu-se

A monstruosa iniqüidade

E desobstruiu-se o leito

Por donde agora deve passar

Com a sua impetuosidade natural,

A corrente das novas idéias.

 

A estrada está desobstruída.

Não há aplausos que bastem

Pra a glorificação

Do grande acontecimento.

  

Cena VIII

Depois

...Um ano depois

militares

republicanos

latifundiários

assumem o poder

e quebram

a dinâmica abolicionista.

 

1938

50 anos da decretação da Lei Áurea,

o problema ainda não foi resolvido no Brasil.

 

1968

80 anos depois da decretação da Lei Áurea

o problema ainda não foi resolvido no Brasil.

 

1988

100 anos depois da decretação da Lei Áurea

o problema ainda não foi resolvido no Brasil.

 

E a escravidão continua sendo

A causa e o pretexto

Para a estagnação política

E para a esterilidade de todos os esforços.

Para a inércia dos estadistas,

Assim como

A fraqueza e as hesitações dos homens públicos.

 

Hoje porém

A nação está convencida

De que a escravidão

É a causa de todos os vícios políticos

E fraquezas sociais,

Um obstáculo invencível ao seu progresso,

A ruína de suas finanças,

A esterilização de seu território,

A inutilização para o trabalho

De milhões de braços livres,

A manutenção do povo

Em estado de absoluta dependência

Dos proprietários:

Homens que repartem entre si

O solo produtivo.

 

É claro pois

Que não só os proprietários de escravos

Correm perigo,

Mas todos e a sociedade inteira

Que terá de precaver-se

Para fazer face

Ao ataque inesperado desses homens.

 

Neste momento preciso

Em que os gloriosos vencedores

Recolhem os troféus da vitória,

A nação convoca de novo

Os infatigáveis

Operários da liberdade.

 

Sim:

Que a obra não está acabada

Senão depois

Que tiver sido feita

A autonomia do cidadão!

 

Mas qual autonomia, qual nada,

Se a violência do dia a dia,

A fome,

A falta de condições

De higiene e moradia,

A obrigação do trabalho

Sem lazer

 

São – a constatação

Das mazelas

De que o povo

Tem sido vítima.

 

Cena IX

Denúncias

POLÍCIA AGRIDE E MATA GENTE POBRE QUE NÃO TEM ONDE MORAR.

Barbacena é célebre

Entre os tropeiros

Pela grande quantidade

De mulheres prostituídas

Que a habita.

E entre cujas mãos

Estes homens deixam

O fruto do trabalho.

 

Homens muitas vezes

Bastante dignos

Que não fazem

Mais do que

Conformar-se

Com os costumes gerais...

 

De Taubaté comunicamos

Que um horrível atentado

Revestido de todas as circunstâncias

De maior atrocidade de barbárie...

 

O fazendeiro

Senhor Antônio Nogueira de Barros

Moço bem apessoado

De natureza varonil

Homem de bem e bom cidadão

Foi assassinado ontem

Por seu escravo...

O assassino

Conhecido pela sua má índole

Está na cadeia

E contou tudo a sangue frio.

 

O finado pertence a uma família importante da cidade.

 

Um governador

Exigira que se usasse

Os cabelos cortados.

 

Das janelas de seu palácio

Avistou um mulato

Que os trazia longos.

Mandou buscá-lo

Por soldados

E, embora fosse

Um homem livre,

Mandou amarrá-lo

Ao pelourinho.

O preto fugido,

Antônio,

Escravo de José Maximiliano de Carvalho,

Por ocasião de ser capturado,

Cravou em si no ventre

Uma faca.

 

Cena X

Depoimentos

“PARA QUEM TRABALHO EU

SE NEGO À MINHA ALMA

OS BENS DA VIDA?”

 

A verdade é que o Brasil

Como em toda parte,

O liberto é incompatível

Com um regime qualquer

De economia e de ordem,

De trabalho e de moralidade.

 

NEGRO PREGUIÇOSO!

 

-         Levanto por volta

Das quatro da madrugada

E apresento-me ao feitor

Para receber tarefas.

 

(Pense no Ideal do Paraíso Celeste!)

 

-         Às dez horas

Almoço de cócoras

Pra não perder tempo.

E mais trabalho.

 

(Um dia, você tomará assento à mesa de Deus!)

 

À uma hora da tarde

Tomo café com rapadura ou cachaça

E mais trabalho.

 

Às quatro horas da tarde

Janto

E tenho alguns minutos de descanso

E mais trabalho até escurecer.

 

Oramos depois

Para começar o serão:

Cortar lenha – selecionar café.

 

(Lembre-se da plenitude aos carentes!)

 

Às nove horas da noite

Uma refeição rápida

Para dormir.

 

Levanto por volta

Das quatro da madrugada...

 

NEGRO PREGRIÇOSO!

LEVIANO E PROMÍSCUO!

 

(Calor! Alegria! Alívio! Tudo isso terá aquele que resignadamente cumprir o seu dever...)

 

Todos nascemos para usufruir a vida

E não produzir

Para que outros usufruam

 

Somos constrangidos

A trabalhar sem descanso

                                                                                                                                                                    Para poder sobreviver

Enquanto outros usufruem.

 

Será que somos ainda

Incapazes de sobreviver

Sem os bons cuidados

De nossos patrões?

 

O meu senhor é tão bom!

Me dá bastante de comer

E ainda não me bateu seis vezes

Desde que me comprou

E me deixa tratar de minha roça.

 

Vou me casar

Dentro de pouco tempo

Meu senhor me ofereceu

Uma crioula,

Mas eu não a quero.

Vou me casar

Com outra mulher

Que minha senhora acaba de comprar:

É da minha terra

E fala a minha língua.

 

O vencido acha bastante natural

Ser a vítima de um azar

Que beneficiou o vencedor.

 

Os processos de extinção da escravidão

E a formação do mercado livre

Transformaram os libertos

Em trabalhadores assalariados (nós)

Disciplinados e submissos

E apesar disso,

Ou por causa disso,

Pobres e miseráveis.

 

A questão era

Transformar os ex-escravos

Em trabalhadores assalariados

Devidamente disciplinados

Devidamente higienizados

Devidamente imbuídos

Da ética capitalista do trabalho.

 

Os negros não vieram a compor

A massa dos assalariados brasileiros

Naquele período

E carregam até hoje

A pecha de que eram ociosos

E despreparados

Para a vida

Numa sociedade de mercado.

 

Escravidão e trabalho assalariado

Dois processos que convergem

Apenas em tese.

 

Temos que reconquistar a terra

De que a escravidão fez monopólio

Não dá mais para separar as duas questões:

A emancipação dos escravos

E a democratização do solo.